Angicos não é apenas um símbolo da luta contra o analfabetismo no Brasil. É um marco da luta pela universalização da educação em todos os graus, superando a visão estreita de que os graus superiores são destinados apenas aos segmentos das elites e das vanguardas. A proposta de Paulo Freire é mais ampla: uma educação para a democracia, uma educação que potencialize a construção da a cidadania. A luta contra o analfabetismo no Brasil, com a experiência de Angicos passou a ter – particularmente naquele contexto de 50 anos atrás – uma importância incomensurável, pois passou a destacar a dimensão política como fundamento da função gnosiológica da educação constituindo um passo importante para a construção da Democracia Brasileira e da Cidadania Multicultural do Brasileiro.
Assim, conceber Angicos simplesmente como uma experiência de alfabetização de 300 trabalhadores rurais, ou como a aplicação de um novo e efetivo método “psicossocial” de alfabetização, não é entender Angicos.
Angicos foi a fermentação de um processo de mudança pedagógica mais vasta e mais profunda, além de anunciar também a possibilidade de mudanças políticas e sociais também de ampla cobertura e de profundidades abissais no Brasil e na América Latina. Na turbulência social da época, em que a alfabetização de adultos aparecia como pré-condição para o desenvolvimento social, político e econômico, Angicos foi a voz dos nordestinos clamando por justiça social, por solidariedade, por democracia. Assim, por mais paradóxico que pareça, Angicos supera Angicos. Angicos foi um projeto de cultura popular que imaginou e concebeu um projeto nacional de educação para a uma sociedade democrática com justiça social. Angicos foi, também, um projeto de cultura popular, isto é, um projeto de respeito às tradições, à cultura e aos saberes do povo, r do qual Paulo Freire foi o grande idealizador. A partir de Angicos, criou-se a Comissão Nacional de Cultura Popular, com Paulo Freire como seu coordenador, como um pedagogo empenhado na construção da cidadania democrática no Brasil. E é a partir de Angicos que Paulo Freire se torna, com seu exílio primeiro latino-americano e, depois, europeu, um cidadão do mundo e um educador de renome internacional.
Angicos rompeu com a dicotomia público-privado, em que o público é visto como problemático, decadente, incapaz de promover a educação de qualidade, no limite falido, e o privado é exaltado, especialmente o mercado, como eficiente, inovador e proporcionador da educação de qualidade. Angicos não pode ser simplesmente celebrado como algo do passado, mas como um farol que ilumina o futuro. Um farol que orienta a criação de um sistema nacional de educação. Um farol que aponta para a defesa da educação pública de excelência, no contexto de um estado democrático. Um farol que postula a reinvenção da gestão pública no Estado eficiente, honesto, transparente, e, sobretudo, que contribui para o bem estar comum do cidadão e que constrói a cidadania democrática.
Angicos explica, também, porque Paulo Freire é um patrimônio do Brasil, da América Latina e do mundo. Finalmente, reconhecido no Brasil, foi anistiado em 2009 e declarado patrono da educação brasileira em 2012. Seu trabalho tem sido cada vez mais lido, estudado, relido e aplicado em numerosas inovações educacionais, marcando as transformações mais radicais, interessantes e inteligentes da educação mundial.
Angicos é também um convite a um novo pacto social, em que a educação, exercida de comum acordo com os movimentos sociais e a sociedade civil, torna o Estado um instrumento de transformação social, um instrumento de gestão do desenvolvimento, um instrumento de luta contra a opressão, um instrumento de libertação e, não simplesmente, de regulação e de “governança” da ação social, como querem os neoliberais.
Cuidado, porém: Angicos não pode ser simplesmente uma alternativa ao empobrecido e desmobilizador discurso neoliberal, criando outro discurso alternativo. Angicos é também uma metáfora de um discurso radical para que a escola pública se torne popular, um discurso que não se estacione na mera retórica mas um discurso que convide para a ação, um discurso que transite da teoria à prática, um discurso que reconstrua as bases da gestão educacional no Brasil e no mundo todo, sobre as ruínas da tormenta neoliberal. Só assim Angicos, como metáfora, pode transformar-se em realidade.